*** Crítica publicada originalmente no dia 23/01/2011 e republicada agora devido ao lançamento oficial do filme em questão.
Existem alguns momentos em que muitas coisas nos emocionam, momentos em que muitas coisas nos levam a pensar e a raciocinar de forma profunda, e existem aqueles momentos em que os dois se unem de uma forma tão avassaladora que nos acompanha e nos arrasta em seus tentáculos por dias e dias afim, como se aquilo agora fizesse e compusesse uma parte essencial de sua vida, neste caso, de sua vida cinematográfica. Não Me Abandone Jamais, drama que estreou no Brasil este mês, nos causa este último grau de "possessão" por assim dizer, e da melhor maneira possível.
O filme consegue unir razão e sensibilidade de uma maneira tão fina e tão lúcida, que chega a parecer mentira. A fita retrata a relação entre três amigos, que foram modelados (isso mesmo, tipo um clone) a partir de outras pessoas, e que possuem a única e exclusiva função de se tornarem doadores de órgãos quando vieram à juventude. Se a ideia já é de uma originalidade bem interessante, acrescente a isto uma dose precisa de romance, dramas existenciais bem sintetizados e encaixados, discussões artísticas e filosóficas, e estaremos diante de uma das miscelâneas teóricas e práticas mais bem estruturadas e construídas dos últimos anos.
O roteiro é certíssimo, e consegue dizer tudo o que precisa, sem soar pedante, enjoativo ou bobo. O equilíbrio entre o drama e o romance é impressionante, além de uma direção simples, leve e deliciosa de se acompanhar assinada pelo sumido diretor Mark Romanek ( Retratos De Uma Obsessão). Além disso, o filme é de uma beleza ímpar, que une as paisagens rurais da Inglaterra das décadas de 70 e 80, com contrastes mais urbanos em um trabalho belíssimo de fotografia.
Mesmo tudo o que já foi anteriormente citado trabalharem de forma impressionante, o toque final, o que coloca uma enorme cereja no topo do bolo, é a maneira e preciosidade com que Carey Mulligan, Andrew Garfield e até mesmo Keira Knightley constroem seus personagens. O triângulo amoroso é bem construído, e não deixa de escancarar na cara do espectador o tempo todo, que o problema é uma intrusa (a personagem de Knightley), e não a banalização do amor. Aliás, em uma indústria onde o amor se tornou sinônimo de apetite sexual, Não me abandone jamais, entra na contra mão e acaba por demonstrar que o sexo nada mais é que uma parte, e que não pode suplantar os verdadeiros sentimentos. O casal formado por Garfield e Mulligan é incrível, e a química entre os dois é sincera, o que constrói uma relação amorosa, de uma pureza e beleza há muito tempo não vista.
Misturado a isso, o filme ainda consegue inserir elementos filosóficos, artísticos e polêmicas bioéticas e humanistas de uma forma tão salutar e tão bem encaixada, que tudo flui entre espantos pela maneira como estes "pseudo-clones" são tratados e vistos pelas pessoas que "cuidam" deles, e entre momentos belos e de pura emoção. Logicamente, que podemos encontrar vários elementos críticos dentro do afiado roteiro, entre elas, a banalização da arte, do amor, mais principalmente a derrota do humanismo e da alma, perante à tecnologia e ao corpo. É preferível criar seres humanos como qualquer um e deixá-los quase que em cativeiro, criando-os como animais (no pior sentido da expressão), do que deixar muitas vezes meros corpos morrerem e darem seu lugar no plano geral da natureza à outras almas.
O filme trabalha com várias ideias e conceitos que estão cada vez mais obsoletos no mundo atual, como os de humanidade, amor, cuidado e principalmente alma. O ser humano como um ser dotado de alma, e não apenas como um objeto para uso de outras pessoas. A doação de órgãos, desde que feito sobre procedimentos normais, ou seja, quando uma pessoa morre, é totalmente interessante e benéfico, agora, nada justifica uma ação como a criação de seres humanos escravos desse aspecto. Vale lembrar, que em nenhum momento o filme realiza qualquer tipo de crítica ao procedimento de doação de órgãos em si, mas sim a esta ciência e a esta geração cega que não consegue nem encontrar explicação para o fácil, imagine para algo que não se pode ver, nem tocar, mas apenas abstrair, sentir e pensar sobre.
Um trabalho brilhante, recomendado para filósofos, artistas, cinéfilos, pessoas inteligentes, pessoas emotivas, e que acima de tudo possuem capacidade para ainda encontrar beleza e sentimentos reais em um mundo dominado pela falsidade e hipocrisia. Um belo trabalho que supera superficialidades, e que toca o espectador no mais fundo de sua alma e de sua capacidade de conhecer e abstrair. Um filme recomendado principalmente para seres humanos que acreditam e que possuem uma alma, não no sentido religioso cristão banal, mas sim no sentido de humanidade, daquilo que te faz humano, daquilo que te faz único na natureza. Uma fita que reaviva belos conceitos que o mundo atual coloca cada vez mais em uma página virada da história, um filme único, tão bom, que até a resenha insiste em não querer acabar. Impressionante e tocante como há muito eu não via.
( Never Let Me Go de Mark Romanek, 2011)
NOTA: 10,0
Sempre que estou sem sugestões de filmes procuro aqui e não me decepciono.
ResponderExcluirPor isso gostaria de te parabenizar pelo blog e agradecer pelas boas indicações.