Meu avô e eu costumávamos deitar por sobre o assoalho do estúdio de TV nos dias quentes. Era um homem alto, de nariz e sobrancelhas largas, sua pele queimada de sol lembrava a invasão moura do mundo. Muito pouco ou quase nada falava, tinha, contudo, a agradável característica de conversar com sorrisos e gentilezas. As costas nuas se prendiam entre os sulcos da madeira formando vermelhas e finas listras verticais na pele; e não era raro que o piso inchasse com os suores de modo que o beliscão constritor das tábuas se tornasse cada vez mais insuportável. Isso nos obrigava a mudar de posição inúmeras vezes no decorrer do dia, coisa que servia bem como desculpa para acamparmos o corpo num canto mais gelado do chão, ainda que existissem poucas partes da sala que desconhecessem o calor melado da gente. Entre uma reportagem e outra, um scatch e outro, um berrava “Ai!” e logo depois se punha a torcer nos dedos algum insecto da madeira - dentre o mais comum a tesourinha - que dandava a nos morder inoportunamente durante o mais profundo repouso. Da cozinha, por entre vapores de abobrinha e frituras, surgiam os resmungos da minha avó “isso não é coisa de gente” dizia girando uma colher-de-pau em alerta “essa coisa deitar no chão é pra cachorro, porcachones” e a gente se ria todo e soltava latidinhos só para provocá-la.
Foi numa dessas tardes quentes que descobri a maldade dos homens, ou a triste condição da maldade dos homens. Tínhamos acabado de assistir um jogaço onde o nosso Palmeiras havia humilhado o São Paulo - 3 a 1 no Morumbi - e mesmo que deitados agitávamos os braços tanto para comemorar quanto para fazer vento de refresco. A TV mostrava a saída dos portões quando um pobre coitado todo de verde calhou de seguir pelo lado errado da fila, misturando-se à torcida rival. Como num carrossel as gentes circularam o corpo estranho do torcedor couraçando-o feito um animal prestes a ser caçado. Seu peito explodia em respirações rápidas e podíamos ver nos seus olhos duas grandes garrafas rompidas de medo. Começaram as primeiras revoltas, as primeiras vociferações, e não se demorou muito até que estes tímidos gritos e palavras de ordem dessem lugar às manifestações físicas de ódio. Há sempre o golpe inaugura o suplício, que quebra toda aquela tensão e expectativa de morte, a estréia de gala de todas as perversões – e aqui não foi diferente. Um soco na nuca desencadeou o que viria a ser uma laboriosa projeção aritmética, dessas incapazes de se contar no ábaco: dois golpes ao pé do estômago, três pés no peito, vinte um braços/tentáculos de polvo golpeando um único corpo de homem, um único miserável corpo de homem. Meu avô tentava cobrir meus olhos, mas seus finos dedos tremiam e deixavam que as imagens lhe escapassem da censura. O linchamento é a obra prima do animal coletivo. Edmundo marcou dois.
Assistir “Idi I Smotri” me fez desabar neste mesmo assoalho de 15 anos passados. O termo, que em latim significa “vá e veja”, é o irônico convite que inicia o tenebrae livro do Apocalipse. A história se passa numa Bielorússia ocupada por nazistas e, apesar de fictícia, recria fidedignamente os horrores da guerra acontecidos na região. É a maior manifestação artística anti-militar que já tive notícia. No cinema (e na vida) poucas cenas são tão difíceis quanto o genocídio nas igrejas de Dirlewanger: episódio real em que mulheres e crianças foram enclausuradas em naves de madeira para serem queimadas vivas. Enquanto os lança-chamas começavam a incineração dos telhados um megafone anunciava zombeteiramente “Quem não tiver filhos...saia”. E as mães - que seriam perdoadas caso abandonassem suas crianças para morrer sozinhas no fogo – mais faziam o contrário, apertando-as forte contra o peito até que as primeiras labaredas finalmente às fizessem desmaiar de dor. Ao fundo belíssimas fraus e oficiais da SS mascavam patas de lagostas com a boca e os soldados rasos riam, catavam e dançavam arremessando coquetéis molotov. Aproximadamente 200 vilarejos foram queimados e 120 mil pessoas mortas durante as operações envolvendo o esquadrão Dirlewanger na Bielorússia entre 1942 e 1944.
A fita é tão feroz quanto as atuações contidas nela: Aleksey Kravchenko, que na época tinha não mais que 16 anos, faz uma pungente interpretação que transita da infância de brincadeiras e meninices até o pavor transformador dos sofrimentos agudos da guerra. Suas expressões faciais são tão marcantes e arrebatadoras que desafiam a própria dramaturgia; são licenciaturas do medo. Esta grandeza se deve muito ao diretor Elem Klimov, que no ímpeto de produzir uma obra chocante usou métodos pouco ortodoxos e até mesmo perigosos para sua confecção. Foram usadas balas de verdade em todas as cenas contidas na película com o objetivo de resgatar o terror existencial de seus atores. Uma em específico - quando o personagem de Kravchenko se esconde de uma saraivada de tiros por de trás de uma vaca - quase o matou também na não-ficção.
O que é verdadeiramente assustador nos crimes da segunda guerra não são as atrocidades em si, mas sim o sofrível fato de que toda esta absurda desumanidade fora acometida por pessoas comuns: estas que lotam cinemas,fazem pães caseiros, andam de bicicletas no parque, são auxiliares de escritório, contam histórias de ninar. Violência em sua comovente banalidade. A Alemanha, como uma multidão furiosa, uma torcida, um hematófilo monstro multicelular, era um único povo, um polvo de mil braços chacoalhando seus terríveis tentáculos. Não havia mais indivíduos em sua circunspeção, apenas um motivo, ou mais que isso, um mesmo motivo compartilhado por todos os elementos que se lhe faziam vida. Era um novo estado de consciência social coletiva. E não há nada mais perigoso que homens pensando de forma igual e conjunta. A multidão possui moral própria, não há culpa individual no crime realizado por inúmeras mãos. Tudo é permitido. Existe uma sincronia laboriosa nesta dança mortal que é o linchamento, que é o genocídio, como num balé de punhos e pedras que consome cada alma ali presente. Ainda me lembro do último golpe multifacetado: subiu no homem um relevo estranho e escuro na testa, algo que crescia esfericamente a cada juncada, de caráter similar a uma bexiga que se enche vertiginosamente com o gás veneno das câmaras nazistas. A multidão - que é um monstro, que é uma consciência, que é uma dramaturgia, que é coletiva - certamente continuaria, mas o corpo/motivo não pulsava mais. Houve momentos do filme que poderia jurar sentir o vulto dos dedos de meu avô tentando me sossegar os olhos.
Idi i Smotri (Elem Klimov, 1985)
NOTA: 10,0
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