Há quem diga que encarar as longuíssimas cenas de abertura do Tarkovsky é exercer o direito inexorável de babar, abrir a bocarra-de-lobo e deixar a saliva ajuntar-se até que transborde deleitosamente pelos lábios, empoçando a gola da camisa de hálitos e escarros. Elas, as gentalhas (hoje parece que chamam isso de twitter), estão certas e não faltaram com a verdade em nenhum momento. Por mais que seja um desrespeito ao cineasta-mito tal definição não é só uma das mais universais do cinema, mas também uma prova viva de que muitas vezes duma mordaz estupidez pode vazar um raro exemplar de sabedoria acidental. Aqui babar é realmente um processo inevitável, quer você goste ou não do filme.
Considero a existência de dois estados físicos de boca tarkovskiana que ocorrem ou deixam de ocorrer mediante a grandeza espiritual dos interlocutores: no idiota a baba parece se manifestar em sinal “do sono e cansaço que o compasso lento e bucólico que a fita impõe ao espectador”. Noutros casos a baba é suscitada em seu sentido de máximo desejo, líquido elementar da paixão, de mesma grandeza ardente que faz um louco cuspir-se jocosamente por horas fitando uma parede absurda de hospício. Eu sempre me considerei portar a segunda categoria de boca molhada apesar de, admito, ter esboçado de leve o primeiro tipo se contarmos todos os meus contatos com o diretor.
Assistir Tarkovsky é um religioso exercício, uma ginástica de alma, uma maratona de pálpebras; é quase como ir à missa todos os domingos na expectativa de conseguir – dentre infindáveis sermões monótonos e padres pedófilos – uma única epifania estigma que faça tudo aquilo valer à pena. Apesar de difícil Solyaris consegue ser genial até mesmo quando é lento e aparentemente omisso, lindíssimo mesmo quando compenetrado em imagens de rios & pasto & estradas & rios & rios mais uma vez. Isso se dá pela vastidão de significados e presenças ocultas que cada frame da película carrega. Seu trunfo resvala justamente na complexidade dos pormenores; e se a fé é a menor partícula da alma não haveria como julgar tais cenas desnecessárias para a construção metafísica da obra. Afinal se falamos de Tarkovsky falamos de nenhuma outra coisa se não da fé.
“A humanidade era feliz enquanto nas dispensas de cozinha habitava um gnomo, que em cada igreja habitava um Deus” – diálogo de Stalker (Andrei Tarkovsky, 1969).
É um tanto quanto estranho estrear num blog após uma deliciosa review de Religulous, que é possivelmente a antítese de toda esta espiritualidade por onde Solyaris se aventura. No entanto é imprescindível diagnosticar a diversidade da fé num e noutro. ‘Uma das principais diferenças que separa o homem das culturas arcaicas do homem moderno reside na incapacidade deste último para viver sua vida orgânica (em primeiro lugar a sexualidade e a nutrição) como um sacramento. Nada são senão atos fisiológicos para o moderno, embora sejam, para os homens das culturas arcaicas, sacramentos, cerimônias cuja meditação serve para comungar com a força que representa a própria vida. Esta ligação mínima deixou de existir, mas reaparece no moderno de forma um tanto complexa, quando este discute a si mesmo e o seu universo.’ Esqueça, portanto, do pedantismo dogmático, a cristandade hipócrita, os “venha a nós o vosso reino” e os profetas do dim-dim porque por cá o buraco é mais embaixo.
Cena final de Solyaris e a pintura "O Filho Pródigo" de Rambrandt
O filme, baseado no livro homônimo de Stanisław Lem, foi tido na época de seu lançamento como uma resposta soviética ao vazio cientificista de 2001 uma Odisséia no espaço. E mesmo com toda a propaganda política por de trás do embate o objetivo de Tarkovsky era realmente discutir a humanidade usando a ficção científica apenas como plano de fundo, e não o inverso como era habitual – objetivo conquistado apenas alguns anos depois com Stalker, na obra que infelizmente custou-lhe a vida.
Solyaris é o nome de um planeta cujo oceano é, surpreendentemente, um gigantesco ser vivo alienígena de capacidades incalculáveis, de modo que muitos o tomaram por um fragmento de Deus. A dúvida que movimentava a sociedade científica em torno da Solarística era descobrir como e em quê aquela massa amorfa pensava, qual era seu princípio ou razão, vontades e desejos. No entanto a tentativa de humanizar o corpo celeste sempre falhou, desde os estudos primórdios. Apesar de muitos esforços nunca conseguiram estabelecer qualquer tipo diálogo com ele. O planeta que vive mais parece morto, ignorava tudo e a todos. Sob a perspectiva humana Solyaris era um colosso multicelular totalmente débil, aprisionado num monólogo que duraria para todo sempre. Sua capacidade de raciocínio era tão elevada que sua mente havia se enclausurado em si mesma como ocorre nalguns casos de autismo. Ele fazia as perguntas e às respondia por ele mesmo, vivia em si e para si, era evidentemente um Deus autista.
A humanidade havia quase desistido de estabelecer contato até que Kelvin (interpretado por Donatas Banionis), um psicólogo, é chamado à Estação Solyaris para investigar a saúde mental dos poucos cientistas que ainda restavam estudando o misterioso planeta. Neste novo Édem ele descobre que o oceano de alguma forma era capaz de penetrar-lhes a mente materializar pessoas ou situações presentes nela. E não é só isso; por alguma razão ele revivia aquelas guardadas nos locais mais recônditos da memória, ou melhor, os registros mais humilhantes e tenebrosos da memória.
“Pense numa barbaridade ou um crime que você tenha imaginado por alguns segundos de sua vida lúcida. Algo repugnante, assustador que tenha passado pela sua cabeça num único milésimo de segundo. Imagine agora que em Solyaris algo possa transformar essa fantasia de momento em nalgo real, vivo.”
A partir disso o filme desemboca na relação dos tripulantes com seus fantasmas (suas histórias de amor, culpas e perversões) e de Solyaris descobrindo aos poucos a humanidade através de Kelvin. É obvio que exista muita coisa para se inferir neste processo miolo até a antológica cena do final (esta sim digna de torreões de baba: baba eu, baba você, baba as aulas de tela gráfica, baba literalmente Solyaris, baba baby). No entanto me abstenho de qualquer prolongamento sob a imprudência de cometer muitos spoilers. Afinal nos testes de Pavlov usavam a campainha, e não o prato de comida em si para que já se babassem os cães.
Solyaris (Andrei Tarkovsky, 1972)
NOTA: 10, 0
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