Esforcei-me muito para encontrar este filme de grande fama
entre os fãs de cinema de meios mais alternativos e obscuros. Todo este
esforço, pensava eu, deveria ser recompensado com um grande filme de horror,
algo difícil de imaginar quando verificamos que na verdade Mártires é uma
produção francesa, o que por si só, e baseado na história do cinema deste país,
parece caracterizar uma contradição embutida. Contudo, a verdade é que após os
pouco mais de 90 minutos da fita, esquecemos a questão da nacionalidade e
passamos a entender de forma bem clara o motivo de tanta fama e de tanta
admiração, já que Mártires é um dos grandes momentos do cinema de horror dos
anos 2000.
O cinema europeu nunca foi um grande produtor de filmes de
terror (com exceção da Itália, claro), porém, com a grande crise do gênero dos
EUA, os europeus resolveram se aventurar por este meio, e alguns conseguem
grandes resultados como o espanhol [REC] e este filme aqui, que se utiliza de
elementos de tortura e sadismo, porém sem aquele elemento de pura violência de
filmes como O Alberque, Os Estranhos ou Violência Gratuita. Em Mártires, muito
mais que o simples torturar por prazer, existe um conceito, uma ideia que é
utilizada como pretexto e como defesa para tais torturas. Não entrarei em
pormenores da discussão sobre a validade e a percepção da ideia que norteia
tais procedimentos, pois de tal maneira poderia revelar detalhes do filme que
chateariam pessoas com a intenção de assisti-lo, todavia posso afirmar que a
ideia é interessante e muito bem colocada, mesmo que em alguns momentos se
torne pouco explicada e em outros um pouco acelerada para dar lugar a cenas
mais brutas e viscerais.
Mártires possui qualidades raras em filmes de terror. O
elenco está muito bem, responde em igual qualidade tanto nas cenas de terror
quanto nas cenas com exigência de maior dramaticidade. O arco argumentativo do
filme é ótimo e muito bem trabalhado, assim como a intercalação entre passado e
presente e as representações alucinógenas dos personagens. Além disso, a
brutalidade do filme se dá com pouca escatologia e com muita precisão,
utilizando-se muito pouco de elementos de cunho mais gore e focando-se em uma mistura muito bem dosada de terror
psicológico e terror físico. O diretor Pascal Laugier consegue desenvolver o
argumento de uma forma muito correta, e sua mão pesada é essencial para o clima
de sofrimento e de dor constante que o filme tem necessidade de mostrar. Nas
cenas finais, ou seja, momentos das revelações chaves da fita, o clima é
extremamente perturbador, e a situação da torturada é arrepiante, porém o filme
não perde o foco, e continua em sua linha de necessidade deste elemento para o
cumprimento de seu objetivo. Muito mais que torturar o espectador, Pascal
Laugier consegue impor reflexões sobre as obsessões humanas e os limites
práticos de suas buscas. Muito mais que teoria, Mártires mostra o ser humano não
se contentando a especulações metafísicas e teológicas e o revela em tentativas
práticas de elementos especulativos em sua essência.
Se Mártires possui um defeito, este com certeza é seu
trabalho de maquiagem, que em alguns momentos se mostra extremamente falho,
tirando toda e qualquer realidade da cena, e a transformando em algo
incomodamente superficial, entretanto, optei por ignorar tal aspecto, por se
tratar de um filme independente, de baixo orçamento, e que possui preocupações
(sendo estas bem desenvolvidas) muito maiores e mais importantes.
Mártires não foi lançado no Brasil, o que dificulta o acesso
dos fãs locais ao mesmo, contudo o remake
americano (é claro que isto iria acontecer) deve aparecer por aqui para
deturpar a obra original e torná-la bem menos potente e interessante, de tal
forma, que fica aqui a minha dica: antes de ser infectado pela versão
estadunidense, procure na internet ou com colecionadores a versão original e se
surpreenda com um grande filme, que consegue superar os sustos baratos e as
histórias estúpidas que normalmente caracterizam os filmes do gênero
atualmente. Imperdível.
(Martyrs de Pascal Laugier, Canadá/França - 2008)
NOTA: 9,0